De “seja homem de verdade” ao poço escuro por 21 dias: chinês revela como vídeos virais o levaram à guerra da Rússia e o trauma que agora quer evitar a outros

Um cidadão chinês que lutou ao lado das forças armadas da Rússia na guerra contra a Ucrânia afirma ter sido trancado por 21 dias em um buraco escuro com grades de ferro, em punição por contestar seu comandante sobre a falta de equipamentos de proteção. Após um ano no front, o ex-militar alerta outros chineses a não repetirem sua escolha, classificando as Forças Armadas russas como uma “anedota”.
Combatente chinês denuncia abusos após se alistar como voluntário do lado russo
Michael, nome fictício usado para preservar sua identidade, decidiu se juntar às tropas russas em 2023, motivado por vídeos de propaganda vistos na rede social chinesa Douyin. Ex-integrante do Exército de Libertação Popular da China, ele desejava experimentar o “gosto da vida militar no exterior”, mas viu seu sonho ruir com maus-tratos, péssima logística e falta de apoio médico após ferimentos em combate.
Segundo ele, o recrutamento aconteceu inicialmente via redes sociais, com vídeos em russo legendados em chinês, prometendo salários atrativos e uma imagem de força e masculinidade. A propaganda dizia: “Não és um homem? Sê um homem de verdade!”, em vídeos compartilhados no Bilibili e outras plataformas chinesas.
A realidade, no entanto, foi muito diferente. Michael relata que foi preso em um buraco sem espaço para se mover por quase um mês, como punição por discutir com seu comandante sobre a ausência de coletes balísticos adequados. “Foi ali que perdi toda a vontade de lutar por Moscou”, afirmou à CNN, por telefone, enquanto se recupera dos ferimentos.
Além da tortura, o combatente cita equipamentos de baixa qualidade, falta de suprimentos e um ambiente de corrupção generalizada dentro das forças russas. Esses relatos se alinham a diversas denúncias já documentadas desde os primeiros meses da invasão da Ucrânia.
Zelensky revela captura de chineses e expõe presença crescente de mercenários no conflito
A presença de combatentes chineses na guerra se tornou foco internacional em abril, após o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, anunciar a captura de dois cidadãos da China. Segundo o líder, esses são apenas alguns entre “muitos mais” que estariam lutando ao lado da Rússia, alguns integrando grupos como o Wagner.
Pequim reagiu negando envolvimento estatal e pediu formalmente que seus cidadãos se abstenham de participar do conflito, classificando as alegações como “sem fundamento”. Já Moscou, por meio do vice-ministro das Relações Exteriores, afirmou que a informação seria uma “completa mentira”.
Apesar disso, Kiev apresentou publicamente os combatentes chineses capturados, enquanto Zelensky mencionou a existência de ao menos 155 outros cidadãos da China em solo ucraniano combatendo pela Rússia — número que pode ser ainda maior, segundo o próprio presidente.
Michael confirmou que conheceu centenas de chineses nas fileiras russas. Outro ex-combatente chinês, que também falou à CNN sob anonimato, disse que seu salário como mercenário era cerca de três vezes maior do que o que recebia na China, e muitos buscavam isso como uma forma de ascensão social.
Chineses recrutados por anúncios apelativos em redes sociais dentro do país
Michael conta que sua decisão foi impulsionada pelo desejo de retomar a vida militar e por não ter motivações políticas. “Sou apenas um soldado puro”, disse. Ele viajou com visto de turismo à Rússia em novembro de 2023, após ver anúncios de recrutamento com promessas de 200 mil rublos por mês e bônus por cada quilômetro de avanço contra as tropas ucranianas.
Mesmo inicialmente rejeitado pelo exército russo por não falar o idioma, acabou se alistando no grupo Wagner e depois assinou contrato com o Ministério da Defesa, atuando na linha de frente em Bakhmut. Segundo ele, os vídeos de propaganda usavam apelos viris para atrair jovens: “Escolhe o teu papel e junta-te às forças de elite do país”.
A motivação financeira era clara para muitos. Um comentário rastreado pela CNN no Douyin dizia: “Sem dinheiro, não há honra”, vindo de um endereço IP localizado em território russo. A maioria dos recrutados se via como pertencente à base da pirâmide social da China, em busca de status e segurança financeira.
Outro combatente chinês ouvido pela CNN relatou experiência semelhante. Ex-agente penitenciário, passou um ano no exército russo e afirmou que buscava “algo maior” por se sentir perdido na vida. Sua motivação também não era ideológica: “Talvez seja um complexo de herói desde a infância”, disse.
Presença chinesa do lado ucraniano também cresce com perfil mais ideológico
Apesar de menor, também há registro de chineses lutando pela Ucrânia. Jason, de 27 anos, nascido na China e criado nos Estados Unidos, largou o mestrado em Ciência da Computação para se alistar na Legião Internacional Ucraniana, em Lviv. Ele diz que a ameaça da China a Taiwan foi um dos motivos para pegar em armas contra a Rússia.
O histórico familiar influenciou sua decisão: seu bisavô morreu na guerra civil chinesa lutando contra os comunistas. Jason afirma que sua escolha foi ideológica e não financeira, vendo a guerra como uma maneira de demonstrar apoio à autonomia de Taiwan.
Sophie, uma estudante de doutorado de uma universidade de elite chinesa, também buscou se alistar na Legião Internacional. Ela diz que sua visão mudou após estudar por um ano na Europa, fora do controle da censura e da vigilância digital chinesa. Para ela, o contato com outras realidades revelou o impacto da “informação unilateral da Rússia” dentro da China.
Os dois chineses capturados e apresentados à imprensa por autoridades ucranianas também relataram que foram expostos a uma narrativa unidimensional no país de origem. No entanto, analistas ressaltam que seu depoimento pode ter ocorrido sob coação, o que colocaria em questão sua validade jurídica à luz do direito internacional.
Censura chinesa atua seletivamente, mas vídeos de recrutamento continuam ativos
Após a revelação pública dos mercenários chineses, diversas contas nas redes sociais da China que exibiam combatentes no front foram bloqueadas. No entanto, os vídeos e anúncios de recrutamento militar da Rússia seguem ativos nas plataformas chinesas, incluindo o Douyin, indicando tolerância seletiva por parte das autoridades locais.
A especialista Maria Repnikova, da Universidade Estadual da Geórgia, afirma que a censura dessas contas era esperada após o escândalo, mas que a permanência de conteúdos pró-Rússia provavelmente se deve a um “descuido” e não a uma estratégia deliberada. Segundo ela, essa visão está integrada à narrativa positiva sobre a força militar russa amplamente divulgada na China.
Michael acredita que foi silenciado por ter denunciado publicamente os abusos sofridos no exército russo. O outro combatente que retornou à China relata que foi impedido de sair do país quando tentava viajar para o exterior, suspeitando que a proibição esteja relacionada à sua passagem pela guerra.
Mesmo com repressão seletiva e negação oficial, os relatos indicam que a presença chinesa na linha de frente continua sendo uma realidade, alimentada por desinformação, propaganda e incentivos econômicos direcionados a uma população vulnerável.
Fonte:
A informação foi divulgada por “CNN” e complementada com dados públicos disponíveis em vídeos de propaganda no Douyin, registros da imprensa ucraniana e depoimentos de combatentes identificados pela mídia internacional.