A academia da Marinha e o jogo da faca: se a formação militar implica em se submeter a ordens abusivas, assédio moral e abuso de autoridade

O Colégio Naval, instituição de ensino da Marinha do Brasil voltada para adolescentes de 15 a 18 anos, tornou-se o centro de uma polêmica após denúncias sobre abusos, humilhações e práticas que ultrapassariam os limites do treinamento militar. Um dos episódios mais controversos envolve o chamado “jogo da faca”, prática em que um militar mais antigo impõe que um subordinado coloque a mão sobre a mesa enquanto uma lâmina é cravada de forma rápida e repetida entre seus dedos.
A denúncia veio à tona por meio de um ex-aluno que relatou sua experiência em entrevista publicada recentemente em um podcast jurídico especializado em direito militar. O caso provocou um intenso debate sobre a linha tênue entre a rigidez necessária à formação militar e práticas que podem configurar abuso de autoridade e afronta a direitos fundamentais. A situação se tornou conhecida a ponto de surgirem novas denúncias, dessa vez envolvendo abuso contra adolescentes do sexo feminino matriculadas no Colégio Naval.
“Um belo dia eu tava almoçando tranquilo, lá no Colégio Naval. Do nada, chegou um veterano de serviço que tava usando o que a gente chama de ‘espadim’, que é o símbolo do aspirante. Ele sacou o espadim, e começou a fazer aquela brincadeira de acertar entre os dedos. Cara, ele acertou o meu dedo! Ele cortou o meu dedo! E ficou por isso mesmo. Fé. Volta a comer e fica quieto.”
Duvida se autoritarismo e assédio moral seriam parte de treinamentos necessários para formação de oficiais
Há consenso sobre a necessidade de disciplina, resistência e superação na formação militar. Entretanto, há relatos que apontam situações que extrapolam o treinamento tradicional. Além do “jogo da faca”, há depoimentos sobre casos de assédio moral, humilhações públicas, trotes violentos, pressões psicológicas e negligência médica, especialmente durante a pandemia de Covid-19.
“Frequentemente a gente passa por situações que você olha e pensa: ‘cara, eu não sou um animal, sabe? Eu sou um ser humano, eu não deveria estar passando por isso’”, declarou o ex-aluno em um trecho da entrevista.
Outro episódio relatado é a obrigação de comer uma laranjas com casca por ordem de veteranos. O jovem que fez a denúncia, inicialmente, seguiu as ordens, mas em seguida se recusou ao perceber a arbitrariedade da situação. “A partir desse momento, por incrível que pareça, esses episódios reduziram. Porque todo mundo simplesmente aceitava e ficava quieto e tomava”, revelou.
A psicologia explica que a submissão forçada pode gerar impactos negativos na construção da liderança. Um especialista ouvido, citado em artigo publicado pela Revista Sociedade Militar, apontou que esse tipo de prática pode transmitir uma visão distorcida da autoridade, levando jovens militares a acreditar que a hierarquia se impõe pelo medo e não pelo exemplo e respeito, levando-os a entender a hierarquia de uma maneira distorcida, aplicando-a a tropa sob seu comando no futuro.
A repercussão nas redes sociais, 203 mil visualizações, comentários e compartilhamentos
Após publicada nas redes sociais da RSM, alcançando mais de 200 mil visualizações, a denúncia mobilizou milhares de internautas, gerando um intenso debate sobre os limites da formação militar, assédio moral, abuso de autoridade etc. Enquanto alguns enxergam as denúncias como necessárias para coibir abusos, outros acreditam que se trata de “mimimi” e que a rigidez do treinamento e submissão a situações desse tipo seria parte essencial para a formação de oficiais.
Alguns comentários, que podem ser encontrados em postagem no perfil do Instagram da Revista Sociedade Militar: mostram que muitos brasileiros, incluindo oficiais das Forças Armadas, aprovam os comportamentos.
“Se não está aguentando, pede para sair”, comentou um usuário, ecoando um discurso recorrente entre aqueles que minimizam as denúncias.

Já outros que participaram do debate, incluindo militares da reserva, alertam para os riscos dessas práticas na formação dos futuros oficiais: “Militar digno não pode se submeter a ilícitos e abuso de autoridade. Essas situações são perigosas, pois podem dar a ideia de que superiores podem fazer tudo com subordinados”, disse um comentarista.
“Fiz colégio e escola…saí como 1T pra outro órgão federal. Eu acho que tem excessos sim e muito assédio moral. Hj em dia está melhor, mas muitos já morreram por causa de trotes e de atitudes de adolescente mais antigos inconsequentes...”, opinou um ex-oficial da instituição
Entre as preocupações levantadas está também o impacto psicológico dessas experiências e a perpetuação da perigosa cultura que pode normatizar como regra a existência do abuso de autoridade dentro da caserna. Um militar de alta patente argumentou que a formação deve ser rigorosa, mas sempre dentro dos limites da legalidade:
“As Forças Armadas não podem formar homens acostumados a obedecer cegamente a qualquer ordem, inclusive as erradas. Se permitimos abusos na formação, como garantimos que esses jovens não reproduzirão isso no futuro?”.
Outro ex-oficial alerta para o risco de se formar-se jovens que acreditam que violações de direito são coisas normais. “e quando a ordem for pra tirar direitos da população?”, alerta.
” … interessante ver pessoas que vivem confortavelmente em seu Estado Democrático de Direito, respaldadas na sombra de um artigo 5° CF regendo seus Direitos Humanos, criticarem uma investigação séria sobre abuso de poder(também previsto no Direito Administrativo). É esse tipo de militares que comentem essas arbitrariedades que vocês querem em sua Força Naval? E quando a ordem for para retirar os direitos da população? Pensem bem eles farão sem questionar, já estão acostumados a fazer com seus pares, quem dirá com um povo que os incentivava a fazer isso. Cidadãos, fui aluno do CN, ingressei na EN … Ninguém melhor do que eu para dizer, siga com a investigação, são jovens adolescentes, não curso de comandos, ninguém ali sairá Caveira, quando esse momento chegar o treinamento deverá ser proporcional e PONTO. Meninos regidos pelo ECA, ou é justo revogar o direitos desses meninos também? É justo alegar que tudo certo, eles estão lá por sua vontade então podem ser escurraçados? Um animal doméstico tem mais direitos que esses jovens, a ISONOMIA passa longe e tá tudo certo? Cuidado com a forma como taxam as violações dos direitos alheios, um dia poderão estar ridicularizando vocês por estarem sendo vitimas da mesma forma que estão fazendo com esses jovens.
‘Cuidado com os líderes que estão produzindo aqui.’ – Perfume de Mulher”
A Marinha do Brasil foi questionada sobre a situação ocorrida no Colégio Naval, assim que a Revista Sociedade Militar receber as informações solicitadas as mesmas serão disponibilizadas nesse canal de informações especializado.
Robson Augusto – Revista Sociedade Militar