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Holodomor: Memórias de um massacre silencioso na Ucrânia

por Rafael Cavacchini Publicado em 16/11/2023
Holodomor: Memórias de um massacre silencioso na Ucrânia

O fim do ano está se aproximando e, com ele, também se aproxima o aniversário de dois anos da invasão da Ucrânia pela Rússia. Em fevereiro de 2022, os russos cruzaram a fronteira do país vizinho, iniciando uma guerra que não dá sinais que se encerrará em breve.

Este ano também marcou o 90º aniversário de outra tragédia ucraniana perpetrada pelos soviéticos, o chamado genocídio do Holodomor.

Velas e trigo são colocados como símbolo de lembrança durante o Dia da Memória do Holodomor, em Lviv. Foto: Wikimedia Commons

O Holomodor foi uma tragédia que matou quase quatro milhões de pessoas de fome, privou a Ucrânia da sua independência e, pra piorar, ainda foi negada pela União Soviética por décadas.

90 anos atrás, uma tragédia sem precedentes

Entre os anos de 1932 e 1933, uma fome provocada pelo homem devastou a República Socialista Soviética Ucraniana, levando a morte de milhões de pessoas. Embora tenha sido oficialmente negada pelo Kremlin durante mais de 50 anos, o evento “mudou dramaticamente a sociedade e a cultura ucranianas, deixando cicatrizes profundas na memória nacional”, escreveu Serhii Plokhy, historiador ucraniano.

O nome “Holodomor” é derivado das palavras ucranianas para “fome” ( holod ) e “matar”mor ). O tema, no entanto, tem sido uma questão de disputa entre a Ucrânia moderna e a Rússia.

Crianças ucranianas famintas, início da década de 1930. – Foto: Wikimedia Commons

A Ucrânia já declarou oficialmente a fome como genocídio em 2006 e pressiona a comunidade internacional para fazer o mesmo.

A Rússia, no entanto, opõe-se ao rótulo, chamando-o de uma “interpretação nacionalista” da fome. O Kremlin insiste que, embora o Holodomor tenha sido uma tragédia, não se tratou de um evento intencional e que outras regiões da União Soviética também sofriam naquela altura.

A fome devastou principalmente – e ironicamente – regiões que eram produtoras de cereais da URSS. Estima-se que entre 5,7 e 8,7 milhões de pessoas morreram de fome e de doenças associadas entre 1930 e 1933.

Origens do genocídio

Em 1928, Joseph Stalin decidiu que a sobrevivência da URSS dependia de uma rápida industrialização. O seu primeiro Plano Quinquenal decretou que as propriedades privadas deveriam ser fundidas em quintas coletivas e geridas segundo a linha dos comunistas. Pela lógica do governo soviético, isso acarretaria em aumento da produção, o que permitiria não só alimentar os trabalhadores das fábricas, mas ainda sobraria para exportar para outros países.

Jornal Daily Express, de 6 de agosto de 1934, cita 6 milhões de camponeses mortos no genocídio de Holodomor. Foto: Reprodução / Wikimedia Commons

Contudo, o que se sucedeu foi que o confisco de terras, juntamente com um mau planeamento, levou a niveis atrozes de produção. Quando as más colheitas levaram à fome generalizada no início da década de 1930, Stalin aumentou a aposta, confiscando dessa vez o próprio abastecimento alimentar dos camponeses para tentar cumprir quotas excessivamente otimistas.

Ao mesmo tempo, os soviéticos acusavam os kulaks, como eram chamados os camponeses proprietários de terras, de sabotagem e acumulo ilegal de grãos. Os kulaks passaram a ser considerados inimigos, com muitos sendo mortos ou enviados para gulags, as prisões soviéticas.

Porque é que a Ucrânia foi particularmente afetada?

Um quarto do solo mais fértil do mundo está na Ucrânia, que é famosa como exportadora de grãos desde os tempos antigos. Os bolcheviques dependiam muito dos seus cereais, mas desconfiavam profundamente dos ucranianos.

Após a Revolução Russa de 1917, uma república independente foi declarada na Ucrânia. Posteriormente, uma série complexa de conflitos violentos foram travados, até que finalmente, a Ucrânia se tornou parte da URSS, em 1922.

Contudo, quando Stalin escolheu a Ucrânia para realizar sua rápida coletivização da produção, muitos camponeses resistiram, alguns deles violentamente. Os soviéticos apontaram esta resistência como um dos fatores responsáveis pelas perdas de colheitas. No final, os comunistas e intelectuais ucranianos foram responsabilizados, com os soviéticos ainda mais determinados em extrair o máximo de cereais possível da Ucrânia.

“As pessoas não tinham mais nada a fazer senão morrer.”

Joseph Stalin queria subjugar o campesinato rebelde ucraniano e forçá-lo a trabalhar em fazendas coletivas. A ferramenta usada pelo ditador foi a fome. Por isso, o Kremlin requisitou mais cereais do que os agricultores podiam fornecer. Quando resistiram, brigadas de ativistas do Partido Comunista varreram as aldeias e levaram tudo o que era comestível.

Em 2013, a ucraniana Nina Karpenko, então com 87 anos, contou em entrevista à BBC como conseguiu sobreviver.

“Um pouco de fubá barato, palha de trigo, folhas secas de urtiga e ervas daninhas”, disse a ucraniana na ocasião. “As brigadas levaram todo o trigo, cevada – tudo – então não sobrou nada. Até mesmo feijão que as pessoas reservaram por precaução.”, declarou.

“As brigadas rastejaram por toda parte e levaram tudo. As pessoas não tinham mais nada a fazer senão morrer.”

Um cemitério coletivo. “Um mar de dunas”. Foto: Wikimedia Commons

O Holomodor certamente causou feridas profundas na sociedade ucraniana. Por isso, até hoje, os ucranianos relembram a data como símbolo da importância da luta pelos direitos humanos, da adesão às normas internacionais e aos valores da paz.


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BBC / The Week

 

Rafael Cavacchini

Rafael Cavacchini

Nascido na cidade de Itu, interior de São Paulo, Rafael Cavacchini é empresário, radialista, jornalista e ator. Apaixonado por arte, é ator de teatros desde 2013, participando em peças que vão de tragédias clássicas a musicais. É também radialista no programa “A Kombi Desgovernada”, sucesso em três estações de rádio desde 2015. Começou a escrever muito cedo, inicialmente por hobby. Mas foi apenas em 2011 que transformou o prazer em profissão, quando entrou para o quadro de jornalistas convidados da Revista SuplementAção. Em 2015, tornou-se colunista no Portal Itu.com.br e, no mesmo ano, jornalista convidado da Revista Endorfina. Foi escritor e tradutor do Partner Program do site Quora, uma rede social de perguntas e respostas e um mercado de conhecimento online, com sede em Mountain View, Califórnia. Sua visibilidade no Quora chamou a atenção da equipe da Revista Sociedade Militar. Faz parte do quadro da RSM desde fevereiro de 2023, tendo escrito centenas de artigos e reportagens.